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É O DESTINO, ÉRIKA ©️

Atualizado: 6 de abr.

Saí, devastada, daquele nosso encontro semanal de amigas onde sempre se contaram quatro. 

Quatro jovens adultas, por vezes frívolas, por vezes circunspectas, mas sempre desejosas de celebrar a vida e de a partilhar naqueles momentos tão nossos, a que fazíamos de tudo para não faltar.

- A Vera, foi a Vera.  Como pôde fazer-nos isto ? Disparou a Beatriz num grito rouco que se lhe atrofiou na garganta.

- O que estás a dizer, o que tem a Vera e porque não veio hoje? perguntei com olhar inquiridor.

- Ia lá dentro, ia dentro daquele maldito avião que ontem se despenhou.  Não ouviste as notícias ? E já a Beatriz rompia num pranto descontrolado, perante dois olhares atarantados, o meu e o da Wanda.

Ficámos assim a saber que a nossa amiga mais brincalhona, a mais atrevida, sensual e provocadora das quatro, aquela que não permitia que as nossas reuniões descambassem para estados depressivos e, muito menos, deprimentes nos tinha deixado, vítima daquele acidente brutal e inesperado.

Entreolhámo-nos com olhares esgazeados, incrédulas e devastadas.

Como pode a vida ser, assim, tão cruel ?

 

Afundo-me na poltrona da primeira classe daquele voo rumo a Nova York, um luxo a que decidi permitir-me.

Neste Inverno tão frio em Lisboa e, expectavelmente, ainda mais frio por lá, não sei se realizar esta viagem é fruto dum daqueles caprichos que nos assolam quando a vida nos foge ao controlo ou se se trata de uma fuga em busca da catarse de que tanto preciso,  exatamente pela mesma razão. 

Ou talvez queira apenas viajar para um tempo em que nada de mau tenha ainda acontecido, por anacrónico que tal possa soar.

Reclino um pouco mais o assento, olho pela janela ovalada através da qual já só a imensidão da noite, coloco os fones e retomo a playlist do Spotify no sítio onde a deixara antes, nada mais nada menos que as Quatro Estações, de Vivaldi. 

E já os violinos do Allegro – o primeiro andamento da Primavera – choram nos meus ouvidos, vá-se lá saber se por ironia ou se por castigo do destino e, eu, cada vez mais afundada na poltrona com a alma tão negra como a escuridão lá fora, sinto uma necessidade enorme de encontrar conforto no meu casaco de peles, testemunha silenciosa e cúmplice de tantas outras emoções.

 

- O que queres tu do Jonas, Wanda, atirou Beatriz à socapa.  Enganar a virgindade do rapaz por si já tão baralhado com a sua masculinidade, não achas isso impróprio para uma mulher como tu ?  Ainda se ele fosse um homem mais velho até poderia entender.

Vi nos olhos de Wanda um laivo de fúria e sorri. 

E como a entendi. Pois não era Beatriz quem alimentava os avanços do imberbe Quico, o filho do seu ex,  projetados naquela relação  quase  incestuosa,  pois  não era ela que

permitia que ele a seguisse para todo o lado, como se fosse um animalzinho feroz pronto a atacar em caso de interesse que por ela pudesse mostrar qualquer outro ?

Nos nossos encontros semanais, sempre na casa de praia da Ericeira que herdei dos meus pais, um dos temas preferidos era, invariavelmente, a tendência que todas tínhamos para atrair homens mais novos, na verdade, rapazolas adolescentes com caras borbulhentas e hormonas à flor da pele.

Isso constituía, amiúde, motivo de risotas entre todas, não dávamos ao caso importância de maior mas aprazia-nos constatar que podíamos ser alvo de tais paixões. 

Gostávamos tanto de as alimentar como de as enxotar quando interesses superiores se apresentavam. Que eram vários e frequentes.

Vera era, decididamente, a que melhor fazia esse jogo.  Dava pena ver como o fedelho do meu irmão, um adolescente de apenas catorze anos, sofria às suas mãos.

Delirava quando o via corar à sua passagem ou quando nos encontrávamos nas idas à praia.  Pobre dele, como reagirá quando souber que a Vera não fará mais parte dos seus sonhos de Verão ?

- Não te rias, bem sei que tu és, de todas nós, a única para quem um homem mais novo merece atenção.  Talvez por ele não ser assim tão novo, murmurou Wanda entre dentes.

Intimamente, concordei.  Nuno era, sem dúvida, um jovem adulto, muito mais adulto do que a sua idade ditaria.  E a nossa relação nunca foi apenas platónica. Não, foi muito mais do que isso, foi ternura, foi paixão, foi desejo, foi um conjunto de noites tórridas vividas na penumbra do meu quarto virado a sul e banhado pelo Tejo.

Mas isso nem Vera, nem Wanda, nem Beatriz alguma vez souberam.

 

É também o sofrimento causado pelo afastamento de Nuno, fruto do seu recente e incompreensível casamento com uma provinciana rica mas que não acompanha a sua inteligência intelectual, que me coloca neste voo rumo a Nova York.

Quero esquecer tudo, a morte de Vera, a dolorosa morte de Vera e o afastamento de Nuno, o igualmente doloroso afastamento do Nuno. 

Tudo isto é demasiado penoso para mim.

As minhas memórias viajam ao ritmo das variações do compositor, os Allegros, os Largos, os Adagios, ora mais leves, ora mais ligeiras ora  mais lentas. 

E eis que os violinos se calam na playlist. 

Calar-se-ão, igualmente, as risadas nas nossas reuniões semanais ? Será que lhes daremos continuidade ou tudo deixou de fazer sentido?

É com este pensamento que saio do avião.

Nova York está sob um frio cortante que se me entranha primeiro na cara depois no corpo todo, de forma quase imediata.

Peço um uber e indico ao motorista o Hotel The Plaza na 5ª Avenida (outro luxo a que me permito na senda de afogar as mágoas).

Sinto o aconchegante calor do lobby do hotel, faço o check-in e dirijo-me ao quarto para tomar um duche e colocar uma roupa ainda mais quente.

Atiro com o casaco para cima da cama. 

Esse simples gesto transporta-me para outros lugares, para outras – doces - memórias. Inexplicavelmente,  sinto uma súbita e imensa vontade de comer uma madalena e de beber um chá bem quente.

Acabo de me arranjar, olho para o espelho e desço.

Estou decidida a cumprir a missão que me trouxe à “Grande Maçã”.

Só não sei – ainda - que isso irá acontecer bem mais rápido do que poderia imaginar. 

Encaminho-me para a saída do Hotel e, a certa altura desse curto percurso, uma fragrância inconfundível – porque demasiado familiar - invade-me o olfato. 

O meu coração pula, sinto um pico de energia boa,  como se, por momentos, aquele aroma me leve ao encontro - ou reencontro - com a minha alma gémea.

Eis que uma mão poisa, suavemente, no meu ombro, e mesmo sob o casaco de peles, parece-me reconhecer a dele, a do Nuno, quando nos nossos velhos tempos me tocava, de forma tão terna e tão firme, a um tempo. 

Fico sobressaltada e sinto-me gelar quando “aquela” voz envolvente se faz ouvir:

- Olá, Érika.  Sou eu que estou a sonhar acordado ou foi o destino que nos juntou de novo?

 

©️ Helena Cavacas Veríssimo

Um conto inspirado na obra As Quatro Estações, de David Mourão Ferreira

01 de Dezembro de 2024

Arte: As Quatro Estações, Alphonse Mucha



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