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DEAMBULAÇÕES MUITO PROVÁVEIS ©️

Estou  confortavelmente  estendida  sobre  os  picos  aguçados  duma rocha frente ao mar.    O  dia  está  tão  luminoso  e  agradável  que decidi  que  me ia deitar a pensar  na  vida  porque  é nela  que  nos  deitamos  a pensar  com  frequência especialmente se não arranjamos nada melhor com que nos entreter.

Pensar é uma  espécie  de  conversa  que costumamos  ter connosco próprios quando   não  queremos  falar  com  estranhos  ou  queremos   mostrar  aos conhecidos  ou  ao nosso  alter-ego  que  não estamos disponíveis.  

Claro que quando decidi que ia pôr-me  a pensar  a  minha  mente já estava ocupada com outros  pensamentos  que é um hábito  desnecessário que  teremos  adquirido  lá na mais  tenra  idade  e  de  que só nos apercebemos alguns anos mais tarde por irritante insistência dos mais velhos. 

Foi  então  que  me  ocorreu  aquela   dúvida que  já  terá  ocorrido  a  toda a gente sobre quem teria aparecido primeiro, se o ovo se a galinha.

O mal de nos pormos a pensar é que gastamos demasiado tempo e energia a divagar  sobre  coisas  aparvalhadas  e que não vêm a propósito e quando nos damos conta já estamos muito longe do ponto de partida.  Como agora.  Se ia pensar na vida como é que, do nada, me fui pôr a pensar em galináceos?

É  neste  momento  que  o  eu-que-eu-sou  é interrompido pelo eu-que-eu-queria-ter-sido. 

Tudo  a propósito desta coisa de querer pensar na vida. 

E lá vem ele, do alto da sua cátedra, com as coisas do costume.

E atira: 

- Olha lá, se morresses amanhã que farias tu agora?

Uma pessoa  a querer pensar na vida e aparece  este com uma pergunta que não vem  nada ao caso e até vai em direção contrária.  Olha agora, pensou o eu-que-eu-sou.

E devolvo-lhe de imediato:

- Olha lá tu,  então e se em vez de morrer amanhã eu morrer hoje  como é  que posso pensar no que faria hoje se morresse amanhã?

E  pensei  que  aquilo  era mesmo perder tempo com coisas mais apropriadas aos tais galináceos que não conhecem a verdadeira prioridade das coisas.

Pensamento  puxa  pensamento  e  nem  sei  bem  a propósito de quê lembrei-me do Chico.

O Chico é meu neto e chama-se Francisco. Chama-se assim por causa do avô paterno  que também se chama Francisco.  Por que raio chamam Chico ao pequeno e chamam Francisco ao avô só porque o avô é uma pessoa grande?

Quando  eu  ainda  era  pequena  recebi  no  sapatinho  um grande boneco careca de olhos  azuis  e  grandes  pestanas  pretas.    Ora,  se  lhe  puseram  umas  pestanas tão grandes porque raio haviam de o fazer careca?

Isto para vos dizer  que  o tal  boneco  também se chamava Chico.  Foi assim batizado  

no  lavatório  do  meu  quarto  e  numa  festa à maneira para a qual a minha  avó,  que  

era   modista,   fez  uma  fatiota   a  que  chamou  fato  de  festa  e  que  era composta  

de calças jardineiras em tecido  azul escuro  e  camisa  às  riscas brancas e vermelhas.   

Nunca  percebi por  que  motivo  a  minha  avó,  uma  pessoa   tão  sensata,  não  fez um  fato   de   batizado  a  sério  para  o Chico  e  resolveu  vesti-lo  com   uma  roupa de jardinagem.  

Desconfio  que  foi  para  incentivar  a minha  mãe   a  mandar  cuidar do jardim.

Chamei-lhe  Chico  porque  era  o  nome dum  rapaz  que olhava para mim pelo canto do  olho  quando  íamos  à  missa  dos  Domingos  a  reboque  das  nossas mães.   Vai

daí,  eu também  passei  a  olhar  para  o  Chico pelo  canto  do  olho quando íamos à missa  dos  Domingos  a reboque das nossas mães.   Só para o coitado não ficar triste, não  foi  por  qualquer  outro  motivo  que, porventura, vocês  até  já  se terão posto a adivinhar.

E lá vem o eu-que-eu-queria-ter-sido com mais uma saída escusada:

-  Devias ver se o Freud tem alguma explicação para essa confusão sem nenhum nexo que acabas de inventar.

Aqui   o   eu-que-eu-sou   não   retorquiu   pois   sempre   pensou  levar  a  cabo  essa pesquisa.  

Espero  que  a  consiga  fazer antes de vir o tal amanhã ou o hoje ou seja lá o que for que tenha a ver com a tal coisa de morrer.

Quando  já  não  tinha  idade  para  brincar  com  o  Chico,   mandaram-me   para  um colégio  interno   porque,   como  era  longe  de  casa,  não  dava  jeito  a  ninguém  ir levar-me  e  buscar-me  todos  os dias.   Era  um  colégio  interno misto.   Não  era um colégio de freiras, mas  era  com  se  fosse.    Até  nos  obrigavam  a  ir  à missa   ouvir um  padre  que  nos  ensinava  umas  coisas  um  bocado  estranhas  que  parece  que estavam  ligadas   à   moral,  e  que  também  fazia  questão  de  destratar  os  noivos quando  estes  se  assomavam  à  porta da igreja com carinhas de  anjos ansiosos que alguém lhes abençoasse o romântico enlace. 

Como  ia  dizendo  no  tal  colégio, que  não era de freiras, reinava uma disciplina tipo  militar.   Rapazes  para ali meninas para acolá e no meio o Diretor  e  a mulher a quem chamávamos Generala.  

Garanto-vos que ali não havia corredores subterrâneos secretos. Um  dia disseram-me  

que  nos  colégios  de  freiras  havia  corredores  desses, mas acho  que  é  mentira,  e todos sabemos bem que há quem esteja sempre pronto para denegrir o próximo. Nos  

quartéis , acredito  que  haja.   De  repente   pode   ser   preciso   surpreender  o  

inimigo !   Portanto   os   militares  devem   saber  muito  dessa  coisa  dos  corredores subterrâneos secretos.

Os  anos  que  passei  naquele  colégio  foram  muito  estimulantes  e  permitiram-me fazer  amizades  que  duram  até  aos  dias  de  hoje.   E  embora não houvesse as tais passagens  secretas, pelo  menos  que  eu alguma vez tenha notado, o certo é que  lá  

nasceram muitos namoros que deram em casamentos igualmente duradouros.   

Outros nem por isso, mas  ainda  assim  não  deixaram de ter a bênção do matrimónio noutras  igrejas  que  não  aquela de que já vos falei onde o padre que ensinava moral acolhia mal os noivos.

Não  sei  lá como é que podem ter ocorrido tantos namoricos naquele colégio com  o  

Diretor  e  a  Senhora  Generala sempre ali a empatar o caminho e sem sinal  dos  tais  

corredores, mas eu também era pessoa para deixar muita coisa passar-me ao lado.

Terá  sido  por  causa  dos  olhares  trocados  na  diagonal  com  o Chico, às vezes até me  interrogava  se  teria  ficado  vesga,  o  que  me  poderia  impedir  de  enxergar o que se passava do lado contrário à inclinação do estrabismo.

Quando   cheguei   ao  tal  colégio  pela  primeira  vez  fiquei  muito  intrigada  com  a conversa  dumas   colegas   que   já  lá  andavam  há mais anos e falavam de coisas de que eu nunca tinha ouvido falar.  Sobre rapazes e assim.   Se é que me faço entender.   Elas  eram de  Ourém  e  eu  às  vezes até me perguntava a  mim  mesma  se  alguma aparição de Fátima lhes teria ensinado aquelas coisas todas.

Eram   coisas   realmente  muito  interessantes   e,  embora  eu  não  lhes  encontrasse nenhuma utilidade prática, tinham o dom de me impressionar. 

Também não vou agora  pôr-me  aqui  a  tecer  inconfidências já que, calhando, vocês até iam ficar com má impressão sobre a minha pessoa. 

Acontece que se ficassem o eu-que-eu-sou não se importaria mas o eu-que-eu-queria-ter-sido não ia gostar  e  também não vale a pena estar agora para aqui a aborrecê-lo.

Quando  decidi  ser  independente, que  é  uma  coisa que para mim tem um enorme valor, pus-me  certo  dia  a  fazer um jogo  com uma amiga  para ver quem ficava com um determinado rapaz quer isto dizer quem é que ia conquistá-lo.        

Um-dó-li-tá-cara-de-amendoá-um-segredo-colorido-quem-está-livre-livre-está e quem ficou livre... foi ela!  Aquilo  saIu-me  mesmo  ao  lado  mas  tive  que  me  aguentar  à bronca  sem  fazer  cara feia  e  sem  dar  parte  de  fraca  porque  eu  cá sou das  que preferem quebrar que torcer.

O  eu-que-eu-queria-ter-sido  veio  logo  com   a  conversa  do  costume,  que   quem não quer ser lobo não lhe veste a pele e tal e que cada um faz a cama onde se deita.   

Até  parece  que  aprendeu  a  retórica  com  o tal  padre da moral que  destratava os nubentes, quer estes fossem muito ou pouco inocentes.

O eu-que-eu-sou  nunca  será  o eu-que-eu-queria-ter-sido  por  isso dou-lhe um certo

desconto mas às vezes tem mesmo o dom de me irritar.  

Acho  que  qualquer  pessoa, que  não  seja santa  se irritará e de  certeza que vocês, mas só os que não são santos nem santas, me compreenderão muito bem.

Aqui  chegada,  interrompo  subitamente esta  coisa  de  pensar  nas  coisas da vida, não porque me tenha aparecido à frente um qualquer  estranho  deveras interessante  mas porque    me    dou   conta  que    os picos aguçados   das  rochas,   onde   estou

confortavelmente  deitada  ao  sol, estão  em vias de me rasgar a pele das costas sem qualquer dó e nenhuma piedade.

Levanto-me aflita e pergunto ao eu-que-eu-queria-ter-sido:

- Ei, tu aí, vai um mergulho? 

E entramos apaziguados nas frescas águas do mar.

 

                                                                

©️ Helena Cavacas Veríssimo

06 de Janeiro de 2025

Arte: "A Escola da aldeia", Jean Steen



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