DEAMBULAÇÕES MUITO PROVÁVEIS ©️
- Helena Cavacas Verissimo
- 1 de abr.
- 6 min de leitura
Estou confortavelmente estendida sobre os picos aguçados duma rocha frente ao mar. O dia está tão luminoso e agradável que decidi que me ia deitar a pensar na vida porque é nela que nos deitamos a pensar com frequência especialmente se não arranjamos nada melhor com que nos entreter.
Pensar é uma espécie de conversa que costumamos ter connosco próprios quando não queremos falar com estranhos ou queremos mostrar aos conhecidos ou ao nosso alter-ego que não estamos disponíveis.
Claro que quando decidi que ia pôr-me a pensar a minha mente já estava ocupada com outros pensamentos que é um hábito desnecessário que teremos adquirido lá na mais tenra idade e de que só nos apercebemos alguns anos mais tarde por irritante insistência dos mais velhos.
Foi então que me ocorreu aquela dúvida que já terá ocorrido a toda a gente sobre quem teria aparecido primeiro, se o ovo se a galinha.
O mal de nos pormos a pensar é que gastamos demasiado tempo e energia a divagar sobre coisas aparvalhadas e que não vêm a propósito e quando nos damos conta já estamos muito longe do ponto de partida. Como agora. Se ia pensar na vida como é que, do nada, me fui pôr a pensar em galináceos?
É neste momento que o eu-que-eu-sou é interrompido pelo eu-que-eu-queria-ter-sido.
Tudo a propósito desta coisa de querer pensar na vida.
E lá vem ele, do alto da sua cátedra, com as coisas do costume.
E atira:
- Olha lá, se morresses amanhã que farias tu agora?
Uma pessoa a querer pensar na vida e aparece este com uma pergunta que não vem nada ao caso e até vai em direção contrária. Olha agora, pensou o eu-que-eu-sou.
E devolvo-lhe de imediato:
- Olha lá tu, então e se em vez de morrer amanhã eu morrer hoje como é que posso pensar no que faria hoje se morresse amanhã?
E pensei que aquilo era mesmo perder tempo com coisas mais apropriadas aos tais galináceos que não conhecem a verdadeira prioridade das coisas.
Pensamento puxa pensamento e nem sei bem a propósito de quê lembrei-me do Chico.
O Chico é meu neto e chama-se Francisco. Chama-se assim por causa do avô paterno que também se chama Francisco. Por que raio chamam Chico ao pequeno e chamam Francisco ao avô só porque o avô é uma pessoa grande?
Quando eu ainda era pequena recebi no sapatinho um grande boneco careca de olhos azuis e grandes pestanas pretas. Ora, se lhe puseram umas pestanas tão grandes porque raio haviam de o fazer careca?
Isto para vos dizer que o tal boneco também se chamava Chico. Foi assim batizado
no lavatório do meu quarto e numa festa à maneira para a qual a minha avó, que
era modista, fez uma fatiota a que chamou fato de festa e que era composta
de calças jardineiras em tecido azul escuro e camisa às riscas brancas e vermelhas.
Nunca percebi por que motivo a minha avó, uma pessoa tão sensata, não fez um fato de batizado a sério para o Chico e resolveu vesti-lo com uma roupa de jardinagem.
Desconfio que foi para incentivar a minha mãe a mandar cuidar do jardim.
Chamei-lhe Chico porque era o nome dum rapaz que olhava para mim pelo canto do olho quando íamos à missa dos Domingos a reboque das nossas mães. Vai
daí, eu também passei a olhar para o Chico pelo canto do olho quando íamos à missa dos Domingos a reboque das nossas mães. Só para o coitado não ficar triste, não foi por qualquer outro motivo que, porventura, vocês até já se terão posto a adivinhar.
E lá vem o eu-que-eu-queria-ter-sido com mais uma saída escusada:
- Devias ver se o Freud tem alguma explicação para essa confusão sem nenhum nexo que acabas de inventar.
Aqui o eu-que-eu-sou não retorquiu pois sempre pensou levar a cabo essa pesquisa.
Espero que a consiga fazer antes de vir o tal amanhã ou o hoje ou seja lá o que for que tenha a ver com a tal coisa de morrer.
Quando já não tinha idade para brincar com o Chico, mandaram-me para um colégio interno porque, como era longe de casa, não dava jeito a ninguém ir levar-me e buscar-me todos os dias. Era um colégio interno misto. Não era um colégio de freiras, mas era com se fosse. Até nos obrigavam a ir à missa ouvir um padre que nos ensinava umas coisas um bocado estranhas que parece que estavam ligadas à moral, e que também fazia questão de destratar os noivos quando estes se assomavam à porta da igreja com carinhas de anjos ansiosos que alguém lhes abençoasse o romântico enlace.
Como ia dizendo no tal colégio, que não era de freiras, reinava uma disciplina tipo militar. Rapazes para ali meninas para acolá e no meio o Diretor e a mulher a quem chamávamos Generala.
Garanto-vos que ali não havia corredores subterrâneos secretos. Um dia disseram-me
que nos colégios de freiras havia corredores desses, mas acho que é mentira, e todos sabemos bem que há quem esteja sempre pronto para denegrir o próximo. Nos
quartéis , acredito que haja. De repente pode ser preciso surpreender o
inimigo ! Portanto os militares devem saber muito dessa coisa dos corredores subterrâneos secretos.
Os anos que passei naquele colégio foram muito estimulantes e permitiram-me fazer amizades que duram até aos dias de hoje. E embora não houvesse as tais passagens secretas, pelo menos que eu alguma vez tenha notado, o certo é que lá
nasceram muitos namoros que deram em casamentos igualmente duradouros.
Outros nem por isso, mas ainda assim não deixaram de ter a bênção do matrimónio noutras igrejas que não aquela de que já vos falei onde o padre que ensinava moral acolhia mal os noivos.
Não sei lá como é que podem ter ocorrido tantos namoricos naquele colégio com o
Diretor e a Senhora Generala sempre ali a empatar o caminho e sem sinal dos tais
corredores, mas eu também era pessoa para deixar muita coisa passar-me ao lado.
Terá sido por causa dos olhares trocados na diagonal com o Chico, às vezes até me interrogava se teria ficado vesga, o que me poderia impedir de enxergar o que se passava do lado contrário à inclinação do estrabismo.
Quando cheguei ao tal colégio pela primeira vez fiquei muito intrigada com a conversa dumas colegas que já lá andavam há mais anos e falavam de coisas de que eu nunca tinha ouvido falar. Sobre rapazes e assim. Se é que me faço entender. Elas eram de Ourém e eu às vezes até me perguntava a mim mesma se alguma aparição de Fátima lhes teria ensinado aquelas coisas todas.
Eram coisas realmente muito interessantes e, embora eu não lhes encontrasse nenhuma utilidade prática, tinham o dom de me impressionar.
Também não vou agora pôr-me aqui a tecer inconfidências já que, calhando, vocês até iam ficar com má impressão sobre a minha pessoa.
Acontece que se ficassem o eu-que-eu-sou não se importaria mas o eu-que-eu-queria-ter-sido não ia gostar e também não vale a pena estar agora para aqui a aborrecê-lo.
Quando decidi ser independente, que é uma coisa que para mim tem um enorme valor, pus-me certo dia a fazer um jogo com uma amiga para ver quem ficava com um determinado rapaz quer isto dizer quem é que ia conquistá-lo.
Um-dó-li-tá-cara-de-amendoá-um-segredo-colorido-quem-está-livre-livre-está e quem ficou livre... foi ela! Aquilo saIu-me mesmo ao lado mas tive que me aguentar à bronca sem fazer cara feia e sem dar parte de fraca porque eu cá sou das que preferem quebrar que torcer.
O eu-que-eu-queria-ter-sido veio logo com a conversa do costume, que quem não quer ser lobo não lhe veste a pele e tal e que cada um faz a cama onde se deita.
Até parece que aprendeu a retórica com o tal padre da moral que destratava os nubentes, quer estes fossem muito ou pouco inocentes.
O eu-que-eu-sou nunca será o eu-que-eu-queria-ter-sido por isso dou-lhe um certo
desconto mas às vezes tem mesmo o dom de me irritar.
Acho que qualquer pessoa, que não seja santa se irritará e de certeza que vocês, mas só os que não são santos nem santas, me compreenderão muito bem.
Aqui chegada, interrompo subitamente esta coisa de pensar nas coisas da vida, não porque me tenha aparecido à frente um qualquer estranho deveras interessante mas porque me dou conta que os picos aguçados das rochas, onde estou
confortavelmente deitada ao sol, estão em vias de me rasgar a pele das costas sem qualquer dó e nenhuma piedade.
Levanto-me aflita e pergunto ao eu-que-eu-queria-ter-sido:
- Ei, tu aí, vai um mergulho?
E entramos apaziguados nas frescas águas do mar.
©️ Helena Cavacas Veríssimo
06 de Janeiro de 2025
Arte: "A Escola da aldeia", Jean Steen

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