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A MAÇÃ VERDE ©️

Chamava-se Adão e vendia maçãs no mercado.

 

Era um homem ainda jovem, bem constituído, cabelo escuro a emoldurar uma face morena onde brilhavam, irresistíveis, dois magníficos faróis verdes, tão verdes como as deliciosas maçãs que a sua banca oferecia aos seus fregueses de sempre.  


Evinha era uma rapariga esbelta e doce em cujo olhar um imenso oceano azul se adivinhava prestes a virar mar revolto, tal a sua sede de viver e explorar o mundo.


Vivia aprisionada às mãos duma madrasta que tinha tanto de autoritária quanto de controladora.  Havia perdido sua mãe muito cedo e o pai, um conhecido empresário da indústria têxtil da zona, casara com aquela mulher tinha ela apenas dez anos, altura em que os seus dias se tornaram na mais tenebrosa versão do inferno.  Poucas vezes lhe era permitido sair de casa, onde vivia aprisionada qual gata borralheira, proibida de conviver com pessoas da sua idade e muito menos de fazer amizades. Consequentemente, nunca tinha tido um namorado ou conhecido o verdadeiro sentido do amor.

 

Naquele dia, desejando humilhá-la como gostava de fazer e sabendo-se longe da presença do marido, a madrasta obrigou-a a ir sozinha ao mercado fazer as compras semanais, entregando lhe uma lista infindável com tudo o que deveria trazer para casa. 


Um lampejo de esperança invadiu o ser de Evinha como se, naquele castigo, subitamente vislumbrasse a chegada, à sua vida, da mais risonha Primavera.  


Fechou rapidamente o único veículo que a ligava ao mundo, o seu pequeno computador portátil.  Era nele que passava grande parte do seu dia - quase sempre entregue à escrita – e em cuja  tampa aparecia a figura duma pequena maçã roída, figura essa que lhe transmitia uma sensação  quase sempre promissora e esperançosa.   

Levantou-se, sem hesitar. Iria ao mercado, sim. E logo decidiu que, nessa saída, iria fazer tudo o que o seu instinto e desejos mais reprimidos lhe ditassem.  


No preciso momento em que deixou fechar atrás de si, com estrondo, a pesada porta da casa onde vivia desde que nasceu, rasgou em mil pedaços o papel das compras e lançou-os ao ar como se de uma fresca e libertadora chuva se tratasse.  


Dirigiu-se ao mercado e um sentimento de alegria começou a ganhar espaço e a agigantar-se dentro do seu peito.   Veio-lhe à mente a maçã dentada que todos os dias via no seu portátil quando se sentava à secretária a escrever e, sem saber discernir o motivo, decidiu - naquele preciso momento  - que tudo o que traria para cada seria, apenas, um belo cesto de maçãs verdes.


Correu todas as bancas do mercado uma e outra vez, num movimento basculante. De lá para cá e de cá para lá.   


E já cansada de tanto correr em busca duma banca com maçãs verdes, eis que vê ao longe um farol verde, ou melhor, dois magníficos faróis verdes, que logo captaram a sua atenção lhe indicaram o rumo a seguir como se lhe dissessem corre em minha direção.

 

E quando o imenso oceano azul e os magnífico faróis verdes se acharam frente a frente souberam, na hora, o que significa encontrar a alma gémea e, então, viram cristalizar as suas emoções num tempo cuja duração não podem contabilizar. Só sabem que aquela simples troca de olhares os transportou para um paraíso desejado e lhes valeu por toda uma vida adiada. As suas almas fundiram-se numa única, imaginaram mil histórias de encantar, projetaram as suas vidas unidos, entregues a uma felicidade conjunta pautada por doces beijos e longas carícias de amor. E ali souberam, instintivamente que seria um amor para a vida toda. Selaram o compromisso assim idealizado mordiscando, de forma partilhada, a mais reluzente maçã verde que encontraram na banca.

 

Evinha procurou, então, outra maçã verde e pegou nela. Fez o caminho para casa e, ao passar pelo jardim ao lado do mercado, lembrou-se que no pequeno zoo ali existente, havia uma  serpente. Mas não uma serpente qualquer, era uma serpente venenosa.  Aproximou-se da jaula da serpente e colocou, estrategicamente, a maçã verde no chão, no preciso ponto onde acabava a proteção de vidro que a separava dos transeuntes. Não teve que esperar muito para a ver agindo sobre a maçã. Retirou, então, a maçã do chão junto à jaula, colocou-a no cesto vazio e dirigiu-se a casa, apressadamente.  


Antecipava que, naquele dia, a sua vida iria dar uma volta de 180 graus. 


Com um largo sorriso nos lábios, atirou à madrasta:  

- Voltei com as compras. Trouxe tudo o que me pediu e ainda trouxe um presente muito especial para si.  


E tirando a maçã verde do cesto vazio, Evinha continuou:  

- Aqui tem, coma, é a maçã mas bela e saborosa que encontrei no mercado.  

  

© Helena Cavacas Veríssimo  

29 Outubro 2025 

Arte: "Ceci n'est pas une pomme", René Magritte

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