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UMA RIBATEJANA REBELDE ©️

Madalena irrompeu, cambaleante, no imponente casarão da tia Constança e arrastou-se até à aconchegante saleta azul onde se deixou cair, desfalecida, no velho sofá de veludo florido em tons pastel. O som pesado que as suas grossas botas de montar provocaram no soalho corrido do longo corredor, magnificamente encerado e resplandecente nos seus reflexos dourados, alertou Mimi, a velha criada, que pronto apareceu, vinda dos fundos, sobressaltada com o descompassado ruido.

-   Menina, menina Madalena, ai Jesus, o que se passa? Ai Jesus, ai Jesus! 

E correu novamente para os fundos, a arfar nos seus 90 quilos, implorando o auxílio de D. Constança, fidalga ribatejana dos sete costados, uma mulher imponente no seu metro e setenta de altura, outrora senhora de uma beleza impar que ainda se lhe adivinhava no porte altivo e no olhar penetrante.

-    O que é mulher? Que agitação é essa? Acalma-te, olha o teu coração! Respira e explica-me o que aconteceu.

-      É a Madalenazinha, a menina! Caiu desmaiada e não dá acordo de si! Ai Jesus, ai Jesus!

Vieram ambas em auxílio de Madalena que continuava inanimada, atirada sobre o velho sofá, a face lívida, apenas colorida pelas belas pestanas negras e pelos longos cabelos castanhos, desalinhados nos seus largos caracóis.

-    Querida, acorde, o que se passa? Foi montar e excedeu-se como é seu hábito, não é verdade? Vamos lá, acorde, ora esta! Mulher, que faz você aqui? Vá buscar um copo de água açucarada, mexa-se criatura.

D. Constança ficou a olhar a sobrinha ali estendida sobre o sofá, e nessa contemplação veio-lhe, inevitavelmente, à memória, o atribulado percurso de vida daquela que era a mais nova dos cinco filhos da sua irmã Josefa.

Nascidas no seio de uma abastada família ribatejana da Golegã, herdaram dos pais, fidalgos brasonados da região, uma grande casa de lavoura, conhecida por Casa Grande, que se estendia  por diversas freguesias, e uma  prestigiada coudelaria, situada na Quinta das Glicínias, onde se criava o puro sangue lusitano, e de ambas se oergulhavam muito.                             

Constança sofreu um grande desgosto de amor na juventude do qual nunca haveria de se recompor. Jurou, por isso, não mais se entregar a qualquer outro homem.

Por seu lado Josefa, a sua única irmã, era uma mulher dócil que cedo enviuvou. João Beirão, o marido, fazendeiro rico vindo de Almeirim, homem dinâmico e impetuoso, assumiu a liderança da gestão dos negócios da família, logo após o casamento. Por essa altura, já a Casa Grande estava nas mãos de Constança e Josefa, e a presença de uma mão masculina revelou fazer toda a diferença no desenvolvimento do negócio, que conheceu, assim, um novo impulso.

João Beirão veio a tornar-se um homem colérico. A responsabilidade da gestão da grande casa agrícola e os multi-afazeres que tal representava foi avolumando em si um sentimento de desgaste que o levou à exaustão. Começou a apoiar-se no álcool pensando que assim conseguiria alguns momentos de evasão. A sua vida com a doce Josefa conheceu momentos difíceis. Ele precisava de um apoio forte, ela oferecia-lhe um ombro submisso e uma atitude dócil, próprios da sua natureza.  Tiveram cinco filhos, dos quais apenas um varão – Vasco, o mais velho.

Constança não acolhia de bom grado os acessos de irritação do cunhado e incomodada com os seus cada vez mais frequentes erros de gestão e ímpetos desabridos, decidiu deixar a Casa Grande e instalar-se sozinha na Quinta das Glicínias, situada no lado oposto da vila. Ia em busca da paz de espírito que o convívio diário com a irmã e o cunhado há muito lhe haviam retirado. Simultaneamente estaria mais próximo da sua coudelaria e dos seus cavalos, a grande paixão que veio colmatar, parcialmente, o mal sucedido amor da sua juventude.

Passou a dedicar-se inteiramente à criação do puro sangue e da sua coudelaria saiam belos exemplares, apreciados a nível nacional e para além das fronteiras. Todas as manhãs montava durante uma hora, aproveitando para se inteirar da atividade diária das propriedades da família, espalhadas ao longo da vasta lezíria

A sobrinha Madalena foi-se habituando a visitar a tia com cada vez maior frequência. E a paixão pelos cavalos instalou-se e foi crescendo de forma natural.

Embora fosse a mais nova dos cinco filhos de Josefa, também a ela não agradavam os modos do pai e os seus constantes acessos de exaltação. A pouco e pouco, foi encontrando razões para ficar algumas noites na Quinta das Glicínias. Não tardou que as estadias em casa da tia Constança se prolongassem por meses consecutivos. A mãe permitira, pois assim minimizava os conflitos familiares. Já João Beirão encarara com indiferença total a decisão de Madalena.

Constança, na sua perspicácia, adivinhava um futuro incerto para a Casa Grande. Temia que as decisões bruscas e cada vez menos pensadas do cunhado pusessem em causa o futuro do vasto legado, construído ao longo de décadas pelos pais. Sentia que ambas tinham o dever de não permitir que tal acontecesse, mas não ousava incompatibilizar-se com Josefa.

Os piores receios de Constança viriam a concretizar-se. Pouco a pouco, os bens da família começaram a apresentar preocupantes sinais de desgaste. Os trabalhadores mais antigos teciam críticas surdas a João Beirão, e este tornava- se cada dia mais inconsequente e imprevisível nas suas atitudes e decisões. Colapsou com uma crise hepática muito agressiva. E Josefa deparou-se, subitamente, com uma nova realidade. Voltava a ter em seus ombros a gestão da Casa Grande, mas agora mais velha e cansada e com a responsabilidade pela educação dos cinco filhos.

Por esta altura Madalena tinha-se instalado, definitivamente, em casa da tia Constança.

Tornara-se rebelde e voluntariosa e desde os verdes anos que era dada a namoricos, não medindo as consequências dos seus actos. Pela sua ligação ao mundo dos cavalos passou também a gostar da festa brava, e tornou-se uma aficionada. Daí a passar a envolver-se com forcados e a “gente vadia dos fados” como dizia D. Josefa, foi um pequeno passo.

D. Constança cedia às súplicas da sobrinha e organizava frequentemente na Quinta das Glicínias,, divertidas noites de guitarradas, onde se cantava o fado, naquilo que passou a ser um ponto de encontro obrigatório, não só da burguesia instalada na zona, bem como de conhecidos toureiros, alguns proprietários de outras coudelarias, e de muitos aficionados da festa brava.

Achava graça aos devaneios e às paixonetas de Madalena, talvez projetando nela as vivências que gostaria de ter tido se não a tivesse o acaso presenteado com tão marcante e intempestivo desgosto de amor.


-"- 

-    Ouça lá, Frederico. Temos que falar e o assunto é grave. Hoje sem falta, às três horas, no caramanchão da Quinta.

O caramanchão era uma pérgola deliciosa coberta de magníficas glicínias que convidavam aos deleites amorosos e para onde Madalena adorava levar as novas paixões. Era um local tão emblemático da Quinta habitada por Constança, que acabou por lhe emprestar o nome, passando a ser conhecida pela Quinta das Glicínias.

-     O que pode ser assim tão urgente? Sabe bem que estou a treinar o Ganhão para a feira do cavalo. Hoje não posso estar consigo.

-    Pois vai estar, sim. E não argumente, apenas esteja lá à hora acordada, atirou- lhe Madalena em tom de ameaça.

Frederico conhecia-lhe bem os caprichos e por isso resolveu não arriscar. Organizar-se-ia para se encontrarem sob a pérgola, à hora indicada, não fosse a sua ausência provocar em Madalena um daqueles ataques de fúria que a levasse a protagonizar um escândalo frente aos outros criadores.

Quando chegou já Madalena estava sentada sob as glicínias, num quadro que lhe pareceu encantador. Madalena era dona de uma beleza selvagem e invulgar, que dava volta à cabeça dos rapazes.

-    Finalmente, apareceu! Disse Madalena atirando-se-lhe ao pescoço, num gesto meio brusco.

-   Estou muito assustada, sabe? Disparou ela com ar apavorado. 

-   É que estou grávida, ouviu bem? Estou grávida!

Frederico sentiu-se gelar. Grávida? Mas só temos 18 anos, não quero ter um filho, pensou sem saber o que lhe responder.

-   Então, não diz nada? Não reage? É um cobarde, é o que você é! 

Frederico não conseguia articular palavra, ainda atordoado pelo inesperado anúncio. Só pensava na família e no que iriam dizer quando soubessem. Nem sequer lhes tinha dito que namoravam, como iria dizer-lhes que ia ser pai?

-   Trate de arranjar tudo, temos de casar, ouviu bem? Temos de casar!

-    Mas Madalena, titubeou Frederico, não sabendo muito bem o que dizer. Somos tão novos …

-   Irresponsável, é o que você é. Cobarde e irresponsável!

-   Como é que acha que eu me sinto? Feliz, é?

-    E ai de si que diga a alguém que estou grávida. Só se fará o anúncio depois da boda.

-Hã? Você quer guardar segredo? Não, não podemos fazer isso. O que vai dizer o meu pai?

-     O que vai seu pai dizer não sei, só sei o que você vai dizer ao seu pai! Vai dizer-lhe que vai casar, é claro. E trate de preparar o jantar de pedido o mais breve possível.

Foi assim que, dois meses depois, se viram lado a lado na capela da Casa Grande a oficializar a união.

Frederico viveu aqueles dois meses como se de um pesadelo se tratasse. Nunca pensou que, aos dezoito anos, a sua juventude pudesse terminar naquele prematuro enlace matrimonial. Não que não gostasse de Madalena, gostava dela, sim, mas era apenas um namoro, dos muitos que ainda queria ter. Achava- se impreparado e os arrufos e mau feitio de Madalena apenas lhe pareciam toleráveis numa perspetiva de namoro. Não mais que isso.


Os jardins da Casa Grande vestiram-se a preceito e duas enormes tendas brancas foram montadas para acolher os convidados.  D. Josefa, talvezantecipando uma vida mais estável e comedida para a azougada herdeira, desvalorizou a idade dos jovens e entregou-se à organização da boda com todos os pormenores.

Madalena estava linda, num vestido imaculado de renda e tule que lhe realçava a face trigueira e os olhos castanhos cobertos de longos cílios que lhe aveludavam o olhar. Seria levada ao altar por Vasco, o irmão mais velho. Tinha-lhe respeito. Afinal Vasco era 15 anos mais velho que ela e quando se tratava de a chamar à atenção não costumava ser brando. Sabia que ele não aprovava a união.

-     Você é uma criança. Não sabe nada da vida. Casa-se por capricho, não é verdade? Atirou Vasco em tom reprovador.

-   Não, nós gostamos um do outro. Será que consegue perceber o que é isso?

Madalena respondera com pouca convicção, não fosse a conversa azedar e sair- lhe disparado o verdadeiro motivo de tão apressado enlace..

-   Vá lá, aprume-se e sorria, quanto mais não seja para manter as aparências.

-    Você consegue mesmo ser desagradável. Mas não lhe estragarei o dia. Talvez o pobre Frederico lhe ponha juízo nessa cabeça, pobre dele!

-     Oh meu irmão Vasco, não se zangue, pois não é você perito nessa coisa de manter as aparências? Tudo, a bem das aparências! Pois então faça o favor de o fazer hoje de forma exemplar. Não lhe admito que fraqueje. Não lhe coube a si, em herança, o título meu querido irmão D. Vasco? Pois trate de o usar hoje de forma especial. Mostre ao mundo o que pode um nobre fazer em prol das aparências.

D. Vasco afastou-se irritado quase fazendo cair Mimi – a incansável criada que os criara -. que entrava apressada e sempre ofegante, com o belo bouquet de flores silvestres, bem ao gosto de Madalena.

-    Olhe Madalenazinha, que lindo que ficou. E logo dos seus olhos rolaram duas grossas lágrimas por ver a sua menina em vias de se tornar mulher.

A tia Constança olhou para Madalena e, como seria previsível, deixou-se cair numa nostalgia imensa. Lembrou-se do seu grande amor e por momentos viu-se,

ela própria, protagonista daquele momento. E ali ficou de olhar alheado, entregue ao seu sonho… perdido !...

Foi Madalena quem a tirou daquele marasmo.

-   Tia, que tal? Estou bem?

-   Está linda, querida! Quero muito que seja feliz, ouviu?

 

A charrete, com os bancos forrados de cetim branco e adornada pelas mais belas flores do jardim, esperava-a à porta do grande casarão da Quinta da tia Constança. E Ganhão – o mais belo exemplar da coudelaria e o cavalo de que Madalena mais gostava, lá estava, especialmente atrelado para a transportar até à capela da Casa Grande, acompanhada por Vasco.

Era um radioso dia de Maio, o jardim resplandecia primaveril, mais bonito do que habitualmente, engalanado pelas belas glicínias a cair em cachos ao longo da alameda que ligava a casa ao imponente portão de acesso e deixavam escorrer inebriantes e doces odores como que dando o seu contributo para a ocasião.

A família de Frederico para sua própria surpresa, compareceu em força e aderiu sem esforço. Todos os seus receios de há dois meses atrás se desvaneceram quando o pai lhe abriu os braços e deu luz verde ao casamento. Afinal, dos três filhos, nenhum, para além de Frederico, mostrara interesse em constituir família.

-     Parabéns, rapaz, finalmente vamos ver a família aumentada. Quero ver esta casa cheia de netos. Muitos netos a correr por estes campos, pois então!

Frederico ficou feliz por não ter encontrado a suposta oposição e pensou para consigo que o pai iria ser presenteado com o aumento da prole muito mais cedo do que imaginaria.

E sorriu, confiante 

Ganhão avançava pelas ruas da vila com o seu garbo e porte altivo. Era um belo exemplar e, por si só, oferecia um belo quadro. Mas foi com Madalena que a Golegã se emocionou, a todos acenando no seu sorriso cativante e algo infantil.


A festa entrou noite fora, regada pelo belo vinho da região que o pai de Frederico fez questão de escolher dentre as melhores reservas da sua conhecida adega.

A elite Ribatejana fez-se representar pelas melhores famílias. Todas fizeram questão de marcar presença enriquecendo a festa com as suas conversas e animação.

Os noivos rodopiavam por entre os convivas, em danças alucinantes. Frederico entusiasmado com o calor humano foi-se entusiasmando, igualmente, com a bebida, esquecido dos tranquilizantes, subrepticiamente retirados da caixa de medicamentos da mãe, e que começara a ingerir na véspera, como forma de travar   a ansiedade e o nervosismo próprios dos noivos.

Lentamente, começou a sentir-se invadido por um torpor estranho. Já havia, por diversas vezes, sentido os efeitos de excessos pontuais e sabia quando parar. Conhecia-se o suficiente para identificar os sinais de alerta. Mas não “aqueles” sinais de alerta.

Começou a sentir-se confuso. Numa primeira análise atribuiu tal facto ao rodopio enlouquecido a que Madalena o sujeitava. Mas à confusão foi-se gradualmente juntando uma certa falta de ar, uma certa dificuldade em respirar.

-    O que me está a acontecer? Que sintomas estranhos são estes? Mal consigo respirar, debatia-se Frederico consigo mesmo, desapertando a camisa e desfazendo-se do aperto do “papillon”.

-       Preciso sentar-me um pouco, Madalena. Desculpe, mas estou um pouco cansado. Vasco, posso entregar-lhe a minha noiva por uns instantes?

E já Madalena rodopiava enlaçada pelo irmão, sem mesmo dar conta da aflição do, já então, seu marido.

Frederico entrou na Casa Grande e procurou uma cama. Deitou-.se e caiu num coma profundo, do qual não mais viria a acordar.

Mais de uma hora se passou sem que a sua ausência fosse notada. Madalena passava de mãos em mãos numa alegria estonteante e alheada do momento presente.


Foi Vasco quem deu a festa por encerrada, dirigindo-se ao médico da vila, ali presente, para que viesse em auxílio de Frederico.

-   Está em processo comatoso, sentenciou o Dr. Lopes da Cunha, com ar apreensivo e solene. Tem de ser levado a um hospital. Por favor, uma ambulância, faço questão de o acompanhar.

-"-

Madalena vivera os últimos sete meses da sua vida, após o casamento, imersa num misto de emoções, que num mesmo dia conheciam as mais variadas oscilações. Tão depressa vivia a enorme revolta de ver Frederico adormecido naquela inconsciência infindável e dolorosa para quem o cercava, como subitamente se deixava enternecer por um sentimento maternal provocado pela consciência de sentir crescer dentro de si um pequeno ser que, diariamente, era responsável por um conjunto de subtis alterações, físicas e psicológicas, que ia experienciando.

O estado de Frederico foi dado como irreversível. Dificilmente acordaria do coma e, como em qualquer estado semelhante, a medicina não conseguia prever por quanto tempo poderia permanecer assim.

Um anexo, dotado de todas as comodidades e conforto foi mandado construir ao fundo do jardim da Quinta das Glicínias, e Frederico ali passou a viver, rodeado por uma equipa de enfermeiras que se revezavam, noite e dia, 7 dias por semana, para que nunca se achasse sozinho. Desconsolado com tal infortúnio o pai de Frederico fazia questão de assegurar toda e qualquer despesa, impotente por não conseguir assegurar que a ciência resgatasse o filho de tão desoladora situação.

No auge dos momentos de revolta, Madalena chegava a amaldiçoar o marido. Como pôde ele contribuir para ficar em tal situação? Porque não teve consciência da brutal consequência do seu acto impensado? Tudo questões para as quais obviamente não encontraria respostas, tão pouco as poderia obter pela voz de Frederico.

No primeiro dia de Dezembro daquele mesmo ano, Madalena dava à luz uma robusta e saudável criança com três quilos e setecentos gramas. O parto teve lugar em casa da tia Constança, assistido pelo único médico da vlla – o prestável e incansável “João Semana” da Golegã, ou seja o respeitado Dr. Lopes da Cunha.

-       É um bonito rapaz, Madalena. Um bonito rapaz! Rejubilou-se o médico, colocando-lhe a criança sobre o peito.

Madalena emocionou-se, deixando cair duas lágrimas pela face suada e agarrando o filho que não iria, nunca, ter a possibilidade de ser embalado pelos braços do pai.

-      Que destino irónico, aquele a que estamos a ser sujeitos, pensou Madalena olhando embevecida para o recém-nascido.

-      Salvador, o meu filho vai chamar-se Salvador. Porque me veio salvar desta aflição em que tenho vivido os últimos meses da minha vida. É o meu Salvador, a voz embargada primeiro pelo choro e depois por um riso nervoso, pelo qual, subitamente, se sentiu invadida.

Assumiu para si que iria criar aquela criança e fazer dela uma pessoa de bem, em homenagem àquele homem, o seu homem, cruel e precocemente amarrado a uma cama nos fundos do jardim.


-"-

Salvador fez-se uma criança adorável, possuidora de uns belos olhos azuis e cabelos louros em ondas, uma réplica do pai, dizia quem conhecera Frederico em criança. Nem em feitio se assemelhava a Madalena. Era uma criança a um tempo brincalhona e irrequieta mas também capaz de ser doce e meiga para com os que cercavam. Adorava o avô paterno, que nele projetava uma dose desmedida de atenção e desvelo.

Os dias, passava-os Madalena dividida entre os cuidado a Salvador, os seus cavalos e os serões-tertúlia que voltavam a animar a casa da tia Constança.

De alguma forma tentava afastar a atenção da dolorosa situação vivida com Frederico e encontrar novos alvos de atenção. Passou a deslocar-se ao Estoril com frequência. Ali tinha uma simpática moradia que lhe coubera em herança por morte do pai.

Não era muito grande mas tinha a vantagem de estar inserida num fabuloso jardim onde os pais tinham mandado construir uma moradia para cada filho. Uma das irmãs vivia ali durante todo o ano. Vasco vinha com bastante frequência. Era um homem da cultura e estava sempre envolvido em eventos e atividades ligadas às artes e antiguidades. Geria, em sociedade com um amigo, uma galeria de arte na capital.

A proximidade do mar fazia-lhe bem, sentia-se revigorada sempre que dava umas braçadas nas águas temperadas do Tamariz, ou dava umas corridas ao longo do areal. Vir ao Estoril tinha, pois, em si um efeito de renovação.

Passou a vir com cada vez mais frequência. Ali encontrava, também, muitos dos filhos das famílias do Ribatejo. Dotados, porém, de mentalidades mais arejadas e mais à sua maneira.

Por aquela altura vivia-se no Mundo o movimento hippie e assistia-se à ascensão meteórica dos Beatles. Madalena sentiu-se identificada com o movimento e quando um amigo a convidou para irem assistir ao Festival Woodstock, não pensou duas vezes. Iria!

Quando regressou a Portugal já tudo aquilo que o movimento hippie defendia fazia sentido para ela. Faziam sentido para ela a luta pela paz, a adoção de um estilo de vida livre em termos físicos, intelectuais e sexuais, os convívios com muita anarquia à mistura e a libertação da mente com a ajuda de haxixe ou marijuana, as drogas leves mais em voga. “Make love not war” e a indignação pela guerra no Vietname eram as bandeiras mais comuns dos encontros, alguns realizados nos jardins da casa do Estoril.

À sua pele trigueira, cabelos encaracolados e silhueta esguia, passaram a colar- se as calças boca de sino, saias largas coloridas, longas túnicas de tecidos leves, as pulseiras grossas e os colares multicoloridos, as fitas na cabeça e, claro, os fundamentais óculos de sol, sem os quais o “look” não se considerava completo. Madalena incorporava o verdadeiro estilo hippie.

Conheceu Jimmie numa festa na praia. Ele era uma pessoa envolvente e intelectualmente interessante. Tinha vindo dos Estados Unidos para um festival no Guincho e por cá foi ficando, enfeitiçado pela beleza da zona, pelo sol, pela paz reinante e, a partir de determinado momento, também por Madalena.

No dia que resolveu levá-lo à Golegã, até a ”liberal” tia Constança se mostrou indignada!

-  Como pode você, Madalena, trazer a esta casa este homem barbudo e de cabelos grandes, vestido desta maneira? E como pode você mesmo apresentar- se nesses modos, com essas calças largas e esses fios no cabelo? O que dirá a sua mãe, que desgosto lhe prepara?

Madalena abraçou a tia Constança, afinal aquela tia querida tinha quase setenta anos. Teria o direito de a magoar desta forma?

-    Tia, por favor entenda. Só quero paz e amor para o mundo. E o Jimmie partilha desta mesma opinião. Somos hippies, é um movimento que está por todo o lado. E eu sou feliz, tia, eu sou feliz!

-     Mas que quer você fazer com a sua vida? O que pretende dizer ao seu filho Salvador? Vai-lhe aparecer nessa figura? Santo Deus, e eu que sempre dei cobertura às suas irreverências, jamais pensei vê-la, um dia, passar dos limites desta maneira. Não estou preparada para isto!

Enfeitiçados pela vida livre a que se haviam habituado, Madalena e Jimmie voltaram ao Estoril ainda nessa noite, enredados naquilo que veio a constituir uma experiência amorosa sincera e libertadora mas inconsequente e irresponsável.

Madalena voltava a engravidar, mas agora em condições verdadeiramente inverosímeis, pois que se mantinha formalmente casada com Frederico, tinha um filho com três anos a cargo dos avós paternos, vivia de uma pensão concedida pelo pai de Frederico, e esperava um filho de Jimmie, em Portugal de passagem, apenas para usufruir do momento.

Era, novamente, a sua faceta rebelde a vir à tona, de forma dolorosa e com consequências devastadoras na sua vida.

Jimmie não assumiu a criança e, ainda antes do seu nascimento, desapareceu sem anunciar e sem deixar qualquer rasto.

Madalena voltou à Golegã prestes a dar à luz, mais uma vez acolhida em casa da tia Constança e com a ajuda preciosa da zelosa Mimi.

Salvador era agora um rapazinho traquina e o nascimento do mano Francisco trouxe-o, novamente, ao convívio diário com a mãe e a tia-avó, na bela Quinta das Glicínias.

Madalena tornara-se uma mulher vivida e marcada pela vida. Mas em momento algum arrependida por alguma das experiências passadas.


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-    Passe-me essa água com açúcar, criatura. E chame, depressa, o Dr. Lopes da Cunha. A minha sobrinha não dá acordo de si. Estou tão preocupada.

Há já algum tempo que Madalena se vinha queixando de dores na coluna e mostrava alguma fraqueza muscular. Caíra por diversas vezes nos últimos tempos sem motivo aparente e, esporadicamente, os movimentos dos membros superiores pareciam incontrolados.

D. Constança na perspicácia da sua provecta idade, não deixava que nada lhe passasse ao lado. E advertia Madalena para que consultasse um médico.

Mas teimosa como era não tinha, nunca, admitido a necessidade de o fazer. Achava que o facto de todos os dias ir montar e o trabalho na coudelaria seriam uma explicação mais que plausível para o caso.

Lentamente abriu os olhos, já o médico estava à sua beira e a havia observado. 

-     Tem que ir, imediatamente, fazer exames. Não encontro explicação para este desfalecimento e sinto-a muito debilitada. Levante os braços, Madalena.

-    Não consigo, não tenho forças. É como se os músculos não consigam suportar os meus ossos. Não consigo !

 

A Madalena foi diagnosticada um doença neurológica degenerativa, muito agressiva, que comprometeu toda a sua musculatura e a matou em menos de um ano.

Frederico, por seu lado, desprendeu-se, definitivamente, da vida dois dias depois de Madalena ter partido.

Salvador e Francisco tornaram-se dois homens de bem, tal como sua mãe havia desejado.

 

FIM

 

 

 

 

 


 

 

 


©️ Helena Cavacas Veríssimo

Abril 2014

Primeiro Prémio do Concurso  “Literatura no Grémio”, publicado pela Coisas de Ler, Edições,  com o apoio do Continente - Modelo Alverca em Maio de 2015

Arte: "Ribatejo", Teresa Magalhães




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